14 novembro 2013

Sobre um desencontro...



Aquele som acabava tirando minha atenção do livro tão compensador que eu lia. Gritos, reclamações, tapas no vidro, mais gritos e o ônibus retomava seu caminho depois que a usuária escandalosa descia. Mesmo com os fones de ouvido eu ainda consegui ouvir toda a confusão. Depois de ser tirada de dentro da minha pequena bolha, me atrevo a olhar em volta e ver as pessoas que subiram e acomodaram-se enquanto eu estava absorta nas páginas. Sempre tive essa mania, olhar para as pessoas, suas expressões e tentar adivinhar o que acontecia com elas, seus problemas e aflições ou o motivo de seus sorrisos, para onde estavam indo ou de onde vieram.

Olhava para todos ali dentro de forma rápida, sem me prender a alguém. Mesmo de óculos escuros a posição da cabeça poderia me denunciar e encarar uma pessoa nunca foi um gesto bem visto, mas ao vê-lo, não conseguir impedir meu mundo de parar. Lá estava os olhos dele presos a um livro, os fones de ouvido, o pé balançando no ritmo da música. Talvez o tenha olhado com tanto afinco que por um instante ele ergue a cabeça e posso ver seus olhos e antes que você pense que eram belos olhos azuis ou verdes, está redondamente enganado. Eram belos e profundos olhos pretos. Nem castanhos, nem qualquer outra cor. Pretos. Como seu cabelo, como a camisa social que usava, como a calça, como os sapatos e as pequenas pulseiras de borracha em seu pulso esquerdo.

Absorvi cada detalhe até notar que ele ainda me olhava e depois para minhas mãos onde ainda segurava o livro. Por mais que tentasse segurar, acabei sorrindo. O mesmo livro. Quais as chances disso acontecer? Virava a cabeça em outra direção, mas meus olhos ainda estavam lá, fixos nele e pude notar ele me olhando por mais alguns segundos antes de voltar a leitura. Eu também voltava ao livro, sem absorver mais as palavras. Seu olhar não me saía da cabeça, o tom de seus lábios, da sua pele. Queria tocá-lo, sentir o calor que emanava e quem sabe sentar em uma praça e discutir o livro? Qual será seu personagem favorito?

O som da campainha do ônibus me tirava do devaneio, olhei para o lado e seu lugar vago apertou meu coração. Rapidamente viro-me para olhar pela janela e lá estava ele com o livro embaixo do braço, um breve aceno afirmativo com a cabeça era feito, eu apenas sorria e ajustava o óculos enquanto o ônibus seguia seu caminho. Quem sabe um dia não nos encontramos novamente.


Atenção: Encontros é uma nova modalidade de crônicas que descrevem aqueles breves encontros do nosso dia-a-dia e que podem mudar toda a sua vida ou apenas tornar-se uma boa lembrança.

04 outubro 2013

Seu...


"Eu tava só, sozinho..."

Eu sempre fui do tipo sozinho. Nunca tive muitos amigos e nem se quer conhecidos. Os vizinhos me chamam de “aquele cara de cabelo comprido da casa verde” e não precisavam saber de mais nada sobre mim. Muito menos que fui abandonado e por isso estava agora nessa cidade de merda, com um emprego medíocre e sozinho. Sem parentes ou amigos para me aturar enquanto choro minhas pitangas.

O que eu tinha mais próximo do que chamam de amigo era o Carlos, paulista perdido nos confins do nordeste, sozinho, mau humorado e anti social como eu. Às vezes saíamos para beber. Eram dias bons, sentávamos no bar, pedíamos uma cerveja cada e ficávamos soltando fumaça e dando goles na boca da garrafa enquanto olhávamos a rua, as pessoas que passavam, expressões e roupas estranhas. Assim íamos noite a dentro, as vezes até amanhecer. Conversar? Para que?

Show da minha banda favorita? Não fui. Desfile de gostosas de lingerie na TV? Mudei de canal. Apresentação de um circo famoso lá? Lembrei de você e desliguei a TV. Nada me interessava nem chamava atenção e quando percebi, já era noite, a sala estava escura e o meu estômago roncando. Fui até a cozinha arrastando os chinelos e lembro de você reclamando disso. Ligo a cafeteira e lembro de você reclamando do café requentado. Pego um copo e lembro de você reclamando por não usar xícaras. E mesmo com tanta reclamação, eu sentia sua falta.

A noite chegou e foi embora sem que eu desse a mínima para ela, o mesmo aconteceu com o dia seguinte e o próximo e o próximo. Passava na frente da porta com um sanduíche a meio caminho da boca quando notei toda a correspondência acumulada no tapete. Querendo ou não precisava conferir isso, afinal, se não pagasse a luz ou o gás teria sérios problemas para pedir e requentar a pizza. Comecei a separar as correspondências nas pilhas de sempre. Lixo, lixo, vale a pena olhar, lixo, conta, vale a pena, lixo, lixo, conta, conta, conta. Um sobressalto e senti como se o mundo tivesse parado por um breve segundo.

Nem precisei pensar muito para saber quem em sã consciência ainda enviava telegramas. Não me interessava onde você estava dessa vez, Aracajú, Alabama, Japão. Seja lá o lugar em que estivesse, não era ao meu lado. Fui dormir com as suas palavras, que apesar de escritas, eu conseguia ouvir claramente naquela sua voz doce e suave cheia de sotaques dos lugares por onde passava “volto logo”. Fui dormir na cama, como não fazia a semanas e tenho certeza de que peguei no sono sorrindo e foi assim que acordei.

Saltei da cama assim que vi a claridade por entre as cortinas, tomei um banho e assoviava enquanto fechava o portão. Dava um pequeno salto para descer a calçada e caminhava com as mãos no bolso. Dava bom dia a todos que encontrava e me divertia com seu espanto. Passava na frente da delegacia e arrancava algumas pequenas flores do canteiro, acabei esbarrando no delegado e lhe estendi as flores, quase levei uma sova e fiz uma nota mental pra te contar isso depois. Nem esperei pela continuação das reclamações dele e desci a rua até a padaria.

Aquele cheirinho de pão fresco me fez salivar. Com todos os dentes a mostra desejei um bom dia, recebi os pães da mão enfarinhada do seu Manoel. “O amor é lindo seu Manoel” murmurei enquanto lhe pegava as mãos e depositava um beijo “E a vida é bela” continuei falando enquanto ia até o caixa, deixando o troco na caixinha de natal para a alegria da atendente. Comi, arrumei a casa, tomei outro banho. Durante os dias seguintes eu fiz compras, reabasteci a casa, lavei os lençóis e finalmente ouvi o anúncio. Te veria esta noite.

Coloquei a camisa de flanela que ficava linda em você depois de uma noite ao seu lado, já com óbvias más intenções. Uma calça preta, tênis e quando notei estava sentado ao lado de várias pessoas esperando. E esperei pacientemente até ver o holofote aceso no picadeiro e o mestre de cerimônias fazer a introdução, vi leões, cachorros, palhaços e finalmente você. Acompanhei deslumbrado você descer lentamente pelo longo tecido, enroscar-se e descer quase em queda livre, sorrir e acenar.

Senti seu olhar sobre o meu, fiz um aceno com a cabeça e te esperei na saída. Não consigo imaginar como cabe tanta alegria em um só peito, quando abri os olhos e te vi sobre meu corpo usando a minha camisa. E foi assim todas as noites até que você foi embora novamente. Não te pedi para ficar como implorei da outra vez. Sabia que você era assim, gostava de ser livre, mas no fim sempre volta para mim.



Atenção: Essa crônica faz parte do meu projeto Aquela Música que é composto por crônicas inspiradas em músicas. -Seu- foi escrita inspirada na música Telegrama interpretada por Zeca Baleiro.

02 outubro 2013

Alguém...



"...Um outro alguém que me tomou o seu amor."

Eu podia ouvir o som dos seus passos ao longe, rápidos e curtos. Sempre ficavam mais lentos quando se aproximava da porta de vidro. Acompanhava então seus movimentos, arrumar a franja que teimava em lhe cobrir os olhos, arrumar a alça da bolsa sobre o ombro direito, enfiar os dedos nos passadores da calça para puxá-la levemente para cima, passar as mãos sobre a barriga de forma a alinhar a blusa e finalmente entrava. Acenos e sorrisos para todos. Cumprimentos lentos até chegar a sua mesa, onde não precisava virar a cabeça para te olhar. Bastava apenas me inclinar um pouco para o lado e visualizar-te por trás do monitor do meu computador.

Todos os dias eu assistia seu ritual desejando dolorosamente ter estado ao teu lado enquanto você decidia que blusa combinava melhor com a calça azul que você usava hoje ou quem sabe que perfume deveria usar. Esse eu faria questão de sentir dando um leve suspiro em sua nuca. Hoje você parecia inquieta, mordia a borracha do lápis, balançava os pés, olhava de um lado para o outro, como se esperasse algo ou seria alguém? Torcia para não ser a segunda opção. No almoço, dava um jeito de sentar na mesma mesa que você. Nunca tinha coragem de puxar assunto, não foi diferente dessa vez. Engoli o almoço e murmurei uma desculpa de que tinha muita coisa para fazer.

Dessa vez, finalmente tomei coragem e lá estava sobre sua mesa uma simples rosa vermelha, o cartão anônimo levou horas e horas para que eu conseguisse escrever uma simples frase “Sempre à seus olhos”. Será que assim você entenderia que eu estava aqui, bem na sua frente, ansiando por um simples olhar? Um sorriso que fosse dedicado apenas para mim? Meu coração batia mais rápido do que seus passos. Meus olhos seguiam seus movimentos que pareciam executados em câmera lenta. Quanto tempo mais você levaria para chegar a sua mesa? Podia ver seu olhar intrigado sobre a rosa, o brilho que ele exibia, seu toque suave nas pétalas e enquanto você lia o cartão eu suava frio. Sua cabeça movimentava-se na minha direção.

Agora você sorriria para mim, eu sorriria de volta e ergueria os ombros, como se não fosse nada de mais. Andaria até você, te chamaria para um café onde conversaríamos finalmente sobre outra coisa que não planilhas e prazos, te deixaria em casa e no outro dia almoçaríamos juntos, quem sabe um cinema no fim de semana, um jantar, o que nos levaria ao próximo passo e ao seguinte e finalmente te teria em meus braços e a primeira coisa que eu veria ao acordar pelo resto da minha vida seria você.

Então tudo mudou. Enquanto você sentava-se e pegava o telefone, sorria enquanto conversava com alguém, podia ver sua face corar enquanto cheirava a rosa. Sou chamado para uma reunião e não posso continuar com o meu plano. Quem sabe durante o almoço ainda funcione, só precisava de uma nova estratégia. No almoço você não estava e chegou atrasada. Seu sorriso era contagiante e nunca vi seus olhos brilhando dessa forma. O dia foi embora e outro começou, não perderia tempo dessa vez. Quando ouvi seus passos tratei de ficar logo de pé, te abordaria ainda fora do prédio.

Desabei sobre a cadeira junto com os estilhaços do meu coração quando te vi dando um beijo de despedida em outros lábios. Nas suas mãos, novas rosas. Podia pegar trechos de suas conversas com a ruiva que eu nem me lembrava do nome, aparentemente ele era seu novo namorado pelo qual você estava apaixonada a muito tempo e ele finalmente se declarara ao te mandar uma rosa. Foi então que eu entendi que a minha declaração foi usada em consideração de outro amor. Meu mundo caíra e nada mais importava. Não sei bem quanto tempo passou, se foram dias ou semanas fazendo os mesmos movimentos, os olhos fixos no computador, os fones de ouvido. Tudo para evitar te olhar e até mesmo te ouvir.

Chegava para um novo dia no trabalho com a dor dentro do peito e logo me espantei com a rosa sobre minha mesa e um cartão escrito “Para seus sorrisos”. Rapidamente olhei para você que estava mais do que distraída em mais um telefonema, olhei então em volta e pude ver aqueles olhos azuis e curiosos por baixo de um cabelo ruivo e vivo, a expressão que eu mesmo tinha a algumas semanas refletida ali: o nervosismo. Eu erguia a rosa e sorria, de forma sincera. Escrevi em um pequeno papel “Café as 16h?” e vi o sorriso crescer em seu rosto sardento e sem jeito balançar a cabeça de forma afirmativa. No fim, a rosa me deu alguém para amar.



Atenção: Essa crônica faz parte do meu projeto Aquela Música que é composto por crônicas inspiradas em músicas. -Alguém- foi escrita inspirada na música A Flor da banda Los Hermanos.

27 setembro 2013

Liberdade...



"...E eu que pensei que fosse o fim..."

Abri os olhos e por instinto levei meu braço para o lado esquerdo da cama, senti os lençóis vazios, o travesseiro frio e pude apenas suspirar. Estava difícil me acostumar a dormir sozinho de novo, mas era necessário. Ela não voltaria. Já estava cansado de lutar contra esse vazio e a falta que sentia dela. O mais difícil era aturar minha mãe falando que tinha perdido a mulher da minha vida por causa desse meu jeito super-romântico de ser. Sabe, algumas mulheres achariam isso algo bom! Só não encontrei uma dessas ainda. Colocava os pés no chão e precisava chutar as folhas de papel para os lados na busca pelo chinelo. 

Folhas e mais folhas de músicas com o nome dela... Músicas jamais terminadas, músicas de dor de cotovelo e pequenas estrofes de superação em um momento raro em que eu me iludia de que conseguiria viver sem ela. Embaixo de uma dessas folhas estava um pedaço de uma de nossas fotos que eu rasguei durante um dos muitos acessos de raiva, exatamente o rosto dela, sorridente, como se fossemos durar para sempre. O nó me subiu a garganta junto com o gosto amargo da saudade, funguei, sequei os olhos com o dorso da mão e comecei a recolher todos os papeis caídos, pedaços de foto, restos de embalagem de comida. Chega. Estava cansado e queria mais do que nunca uma mudança em minha vida. 

Dessa vez não iria chegar até a porta e começar a catar os pedaços das fotos no lixo novamente. Coloquei a primeira calça que achei junto com a primeira camisa que minha mão alcançou. Desci as escadas do prédio correndo e me impulsionando para frente a cada passo, tinha medo de recuar e desistir, mas cheguei bem na hora. O caminhão do lixo virara a esquina e lá estavam os sacos pretos cheios com meu passado no chão. Esperei até que os homens vestidos de vermelho os jogassem na caçamba e os levassem embora, para longe do meu alcance. Me senti leve. Um calorzinho começava a brotar no meu peito. Eu não me contentaria com essa pequena chama, queria sentir uma fogueira inteira. 

Subi as escadas de dois em dois degraus, irrompi pelas portas até meu quarto e lá estava ele, escorado na parede, inocente e silencioso. Quantas noites não passei chorando sobre seu braço, dedilhando melodias lentas e murmurando letras tristes? Não queria mais sentir essa dor. Dei uma boa limpada, troquei as cordas, coloquei dentro da capa e quando me dei conta já estava contando as cédulas recebidas por sua venda. Andava de vagar pelo centro da cidade, cheio de pessoas indo e vindo, ainda pensava em qual seria meu próximo passo. Me deparei com uma loja de bicicletas e lembrei de um dos muitos momentos que me torturavam, a voz dela contendo um riso ao indagar como eu não sabia andar de bicicleta aos 25 anos. 

"Essas coisas não se explicam oras, simplesmente nunca aprendi". Entrei na loja decidido e saí dela com minha Caloi azul com detalhes verde limão totalmente montada. Sem dinheiro, mas feliz. Era a oportunidade perfeita para aprender. Olhei para o relógio no topo do prédio dos Correios, ainda eram 7h. Corri para atravessar o sinal fechado, atravessei a ponte, mais uma e lá estava eu no Marco Zero. Montei na bicicleta e podemos simplesmente pular a parte dos inúmeros tombos que tomei antes de conseguir me equilibrar e dar algumas voltas incertas. 

O vento no rosto, o sol da manhã, a sensação de liberdade. Queria arriscar mais e ir mais longe. Então lá estava eu, enfrentando o trânsito de volta pra casa. Podia ouvir as buzinas, sentir os buracos, acelerava e quanto mais rápido estava, mais o sorriso aumentava em meu rosto. As bancas de revista da Guararapes traziam as notícias: perca 4kg em 2 dias, Carminha fica Pobre, Comeram a Tiazinha. Em que isso influenciava a vida de alguém? Maneava a cabeça em negativo, estava cansado dessa vida de conformismo e futilidades. Seguia meu rumo, pedalando mais forte e mais rápido. 

Era isso o que eu queria. Um estalo me veio a mente, puxei o celular e tirei uma foto da ponte, com o Rio Capibaribe reluzente sob o sol. A cada bela paisagem uma nova foto. Todas publicadas em um blog. Histórias engraçadas, a melhor galinha guisada da cidade e a pior, as lojas mais baratas, as pessoas espontâneas, o cinema no meio da rua de um bairro pobre com filmes feitos pelos moradores, os artesãos, os pontos turísticos, onde existe ciclofaixas na cidade, no estado, no país, no mundo. E assim seguiu minha vida e meu novo trabalho, mostrar o mundo às pessoas.

Agora estava sentado na beira de uma cama luxuosa em um hotel na Cidade Luz, era Natal e estava nevando. Andava de um lado pro outro um tanto impaciente, testando combinações de gravatas, ternos, jaquetas e por fim lá estava eu usando jeans e uma camisa dos Ramones por baixo de uma jaqueta de couro. Eu podia estar em qualquer lugar, mas jamais deixaria de ser eu mesmo e isso pra mim era o mais importante. Os minutos passavam e continuava aguardando a minha vez de dar entrevista em como decidi simplesmente sair pedalando, conhecendo e mostrando o mundo pela câmera de um celular. 

Meu blog de viagem era um sucesso e meu livro líder em vendas. Ouvia o som do meu celular informando que uma sms chegara, pra variar minha mãe, que finalmente aprendera a enviar sms e não podia deixar seu instinto materno ao me mandar tomar café da manhã e me agasalhar antes de sair. “Mainha, tô bem”, enviei para ela, na esperança de tranquiliza-la, mas dessa vez era verdade, agora eu estava bem. Realmente bem, livre da minha dor e feliz. Agora eu entendo a metáfora de que um ponta pé de vez em quando é bom, pois te empurra pra frente. Decidi que essa seria a frase de abertura da minha entrevista. Hoje só tenho a agradecer àquele rosto sorridente que me deixou.


Atenção: Essa crônica faz parte do meu projeto Aquela Música que é composto por crônicas inspiradas em músicas. -Liberdade- foi escrita inspirada na música Veja Só do Tibério Azul.

25 setembro 2013

Sobre a rotina...


O despertador do celular toca pontualmente na hora programada, o som baixo mais alerta sobre a hora do que a desperta, despertar é para aqueles que dormem e não para os que acompanham o nascer do sol. Ainda olha para o teto vislumbrando as finas tiras de sol desenhadas sobre o gesso branco como se não fizessem sentido a sua existência, na sua opinião a noite poderia ter se estendido um pouco mais. O segundo despertador a lembra que precisa levantar, não tem muita escolha ou outra opção. 

Com um longo suspiro ergue o corpo e põe-se a executar a mesma rotina: o rápido banho, as frutas previamente cortadas na noite anterior, a roupa previamente escolhida, os acessórios previamente escolhidos e tudo tratava-se de prévias e execução. Tudo tinha seu tempo pré-determinado para acontecer e as 6am estava pronta para sair, o indicador já pairava sobre o botão do controle remoto da TV quando o celular vibra, sem muito esforço o tira da bolsa já imaginando o conteúdo da sms, mais uma propaganda da operadora. As sobrancelhas erguem-se a medida que o remetente e parte do conteúdo que é exibido. 

Um sorriso paira sutil nos lábios e os dedos percorrem rápido pela tela identificando o padrão da senha que hoje era apenas um atraso. Estava ansiosa, feliz e curiosa. Ele finalmente falara, finalmente uma notícia. Os milésimos de segundos para a sms abrir parecem uma eternidade, mas finalmente os olhos percorrem o texto e o sorriso se desfaz, os olhos brilhantes ganham uma umidade que controla com todas as forças para que não se tornem lágrimas, não entendia como ainda não havia superado o fim e porque ainda o esperava. Guardava o celular, desligava a TV e voltava a execução dos movimentos de sua rotina: abrir o portão, passar, fechar, guardar a chave no mesmo bolso de todos os dias, andar pelas mesmas ruas, pegar o mesmo ônibus lotado e quando se deu conta, já estava saindo do metrô. 

Ainda faltava a caminhada de 1km e respirava fundo de certa forma aliviada por ter mais esse tempo para pensar. Em seu ouvido a Sonata ao Luar de Bethoven ecoava e marcava seus passos, os pensamentos vagavam de cada pedra que ultrapassava, pela ira que lhe subia a garganta, pela lembrança dos bons momentos. As brigas e desentendimentos não lhe irritavam, mas a ilusão de que fora feliz um dia fazia sua bile levar um sabor amargo a seus lábios. Restavam apenas 3 quarteirões e a margem do canal, atravessava as ruas sem se preocupar com o carro que pretendia passar pelo cruzamento, ignorava os sinais de trânsito fechados, os abertos, os carros entrando ou saindo das ruas e garagens.

O pensamento preso em lembranças e sorrisos, em cheiros e sabores, respirava fundo e erguia a cabeça tendo um vislumbre do céu através dos óculos escuros antes de ouvir a buzina distante e de sentir o corpo chocar-se contra o asfalto quente, precisava apenas abrir os olhos para ver as nuvens cruzarem lentamente o céu, agora estava tudo acabado, bastava fechar os olhos e esperar o fim chegar e aquela dor no peito cessaria e encontraria uma provável paz. Mas acabar dessa forma seria fácil demais. Respirava fundo e ouvia a insistente buzina, o carro parado a poucos centímetros das suas pernas, ela apenas dava de ombros e seguia em frente com sua dor.

23 setembro 2013

Insensível...


“... O meu amor é mais caro, diz quanto você pode pagar...”

O toque insistente do telefone me tira a paciência. Sinto vontade de jogá-lo contra a parede e transformar esse pequeno aparelho em milhões de pedaços silenciosos. A forma de identificação facilitava minha vida, para cada grupo um toque único ou para as pessoas mais especiais ou nesse caso, as mais chatas. De forma que eu sabia quem me liga apenas nos primeiros acordes polifônicos. E daí então vinha a decisão de atender ou ignorar. Já estava cansado de ouvir aquela música e ver aquele nome piscando na tela, Angélica, Angélica, Angélica. O que ela queria desta vez? Eu já lhe dera o que fora pedido, pelo que pagou e apenas isso. Talvez esse seja o problema, ela queria o “mais” que eu não lhe podia ofertar assim de tão bom grado.

O telefone silencia, mas a paz dura pouco e começa a tortura novamente. Mais uma chamada dela e eu fico a fitar o nada, enquanto deixo o vinho tocar meus lábios e levarem meus pensamentos para o passado, explanando sobre o fato de que minha vida tinha suas vantagens, boas vantagens que eu levaria tão longe quanto fosse possível. Para mim, a minha vida começara de verdade com aquela primeira vez em que realizei um favor para um amigo e consegui comprovar que sua namorada cairia fácil na cama de qualquer um. Aposta ganha e descobri ali uma mina de ouro que eu explorava com gosto: eu conseguia seduzir mulheres com uma enorme facilidade. Porque não vender prazer? Deixei para trás muitos corações partidos e outros saudosos, que sempre pagam bem por uma nova visita.

Se me sinto culpado? Não. De forma alguma. Angélica era um desses corações partidos. Desde que a conheci e a tive entre meus braços deixei claro minhas intenções, quem eu era e o que fazia da vida. Deixei claro todos os termos dos nossos encontros esporádicos e ela concordou. Nesse caso seria melhor dizer que me iludiu muito bem. Mais um toque e eu finalmente atendo. Ela queria um encontro, pagaria bem. Era um tanto fora da rotina, ela queria apenas um café e uma conversa. Incomum para mim, mas pagando bem, que mal tem? Abro uma exceção nas minhas regras sobre encontros desse tipo. Afinal eram perigosos e as mulheres acabavam se apaixonando. Pelo visto isso já aconteceu mesmo.

Lá estava eu numa bela manhã de sábado, ouvindo seu relato do que fizera no dia, na semana, no mês, com toda a paciência que fora comprada. Ela tentava segurar minha mão que sem desculpa alguma eu retirava de perto da dela. Nada de carícias de namorados. Ela sabia dessa regra e por mais que tentasse me fazer enxergar as vantagens de um relacionamento estável, não adiantaria. A conversa continuava, dava alguns goles no café e pela expressão que ela fez, chegou a minha vez de falar. Falar o que? Com quantas me deitei essa semana? O que teve de esquisito? Porque faço o que faço? Quais as vantagens? O que tudo isso me trouxe? Essa última questão era fácil de responder. Bastava apenas uma olhada no meu apartamento muito bem equipado e confortável, no meu smartphone caro e cheio de funções e no carro caro que eu dirigia. Frutos do meu trabalho e do meu esforço, não devo satisfações a ninguém e todas as minhas contas e luxos são devidamente pagos.

Ela não ficou satisfeita com a resposta e eu pouco me importava, o tempo dela acabara e chegou a hora de ir embora, atender mais uma cliente na esperança de que a segunda parte do meu dia tenha um pouco mais de emoção e troca de fluidos corporais. Levantei sem me preocupar em deixar a conta paga, cavalheirismo não era para quem cobrava pelo prazer dado. Deixava para trás aquela pequena loira sentada a me fitar com os olhos azuis perdidos e lacrimejantes, desejando um pouco mais de afeto e carinho. Para ter isso, seria preciso que ela pagasse mais, muito mais.




Atenção: Essa crônica faz parte do meu projeto Aquela Música que é composto por crônicas inspiradas em músicas. -Insensível- foi escrita inspirada na música Aos Garotos de Aluguel d'A Banda Mais Bonita da Cidade. 

20 setembro 2013

Sobre as nuvens...


Eu não tinha mais nada para fazer daquele lado do globo, nem coisas que eu não me importo de deixar para trás. Tanto que não foi preciso mais do que algumas horas para arrumar as duas pequenas malas e uma mochila com os pertences pessoais. O simples apartamento que eu alugara mobiliado foi um achado e facilitador da minha partida, precisei apenas entregar a chave a dona e me despedir. Ouvi vários “porquês e para ques” e tantos outros “é perigoso”, mas a essa altura do campeonato podia apenas agradecer a todos os conselhos, as xícaras de açúcar e refeições enviadas nos fins de semana como um socorro a minha falta de tempo para cozinhar e parti.

Eu tinha agora 25 anos, um quarto de século, aproximadamente nove mil cento e tantos dias, nem consigo contar quantas horas e zilhões de outros segundos que eu passei morando na mesma cidade, com as mesmas pessoas e os mesmos momentos. Se tenho lembranças felizes? Sim eu tenho. Aquela rotina era o que me tirava do sério, me sentia sendo sugada dia após dia, tendo minhas alegrias tomadas pela rotina sem fim. Mas sempre sonhei e imaginei algo que me faria viver de verdade, que me faria feliz e tiraria meus pés do chão. Foi por esse motivo que sem mais nem menos fiz as malas e decidi partir para o outro lado do mundo.

Estava sozinha no salão de embarque, a passagem e documentos necessários seguros em minha mão, uma música tocava de forma retumbante e repetitiva em meu ouvido. Ah sim, a Nona, todo momento era o momento para a Nona, não importa quantas vezes ela tocasse, sempre me arrepiava quando o coral entrava ao fundo, deixando o som das cordas em segundo plano. Foi nesse exato momento em que meu voo foi chamado, guardei o pequeno mp3 e segui em frente. Não tinha ninguém para dizer adeus ou alguém que acenaria para mim em despedida enquanto eu passava chorosa para o corredor de acesso ao avião. Já estava confortável na grande poltrona, com estranhos ao meu lado e aquele medo na hora da decolagem acelerava meu coração.

Pelo visto também não era a sensação mais confortável para a pessoa ao meu lado, nossas mãos acabaram se cruzando quando fomos, ao mesmo tempo, apertar o braço da poltrona como refúgio. Não foquei seu rosto, mas gentilmente ele cedeu o apoio para meu medo, que apertei com vontade até estarmos estáveis acima das nuvens. Soltei o braço da poltrona, destravei o cinto e estava de pé pedindo com licença para pegar minha mochila no bagageiro. Tinha programado tudo para a longa viagem e ao retornar ao meu lugar, já estava com o livro nas mãos. Violino da Anne Rice, um belo e trágico romance. A mochila ia para o chão e retomava a leitura onde havia parado algumas horas antes. Mal tinha virado a primeira página e sem querer minha visão periférica captou algo que eu não esperava: o ocupante na poltrona ao meu lado também lia Violino, ergui as sobrancelhas e ao olhar para ele não pude deixar de sorrir e mostrar a capa do meu livro. A viagem acabou tornando-se curta quando desembarcamos na primeira escala e menor ainda na segunda. Nosso lugar sempre lado a lado. A noite chegara e o sono também. Quando notei estava dormindo com a cabeça apoiada em seu ombro.

Os raios de sol entravam pela pequena janela ao meu lado. Não faltavam muitas horas para o fim da viagem e eu sorria ao olhar para o homem ao meu lado. Não era um modelo de beleza nem nada do tipo, mas tinha um belo sorriso e olhos negros tão profundos que me prendiam em sua plenitude. Nessas 21 horas de viagem foi uma boa companhia. Então ele acordou e acabou sorrindo também. O carrinho empurrado por uma bela aeromoça chegou e apesar dos meus protestos ele acabou pagando pelo meu café da manhã. Comíamos entre mais perguntas e respostas bobas, falando do tempo, de livros, filmes, músicas e ele finalmente faz a pergunta que eu evitava fazer a mim mesma, "porque estava atravessando o mundo"? “Para viver” foi a única coisa que consegui responder com um erguer rápido dos ombros. O trabalho em uma livraria era um bônus conseguido por uma amiga que fizera o mesmo. Ele apenas sorriu assim como eu. Estávamos embarcando para a terceira e última escala quando começamos a rir ao notar nossos lugares novamente juntos, “é o destino” ele murmurou cheio de si e sorriu me dando o lugar na janela.

Eu não esperava sentir esse aperto no peito ou aquele arrepio quando ele segurou minha mão durante a decolagem, muito menos todo o resto que senti quando seus lábios tocaram os meus, eu nem precisava estar dentro de um avião para me sentir acima das nuvens. Tínhamos o mesmo destino, Londres, mas bairros distintos. Não fizemos promessas, nem juramos ficar juntos para sempre. Se quer marcamos um encontro posterior. Apenas trocamos endereços. Apenas deixaríamos as coisas acontecerem. Apenas. Se alguém me dissesse um dia que eu me apaixonaria a primeira vista, eu soltaria uma ressoante gargalhada. Estávamos agora passeando de mãos dadas e sorrindo como um casal que se conhece há anos. Tomamos café, almoçamos, fizemos sexo várias e várias vezes durante muitos meses.

Amores e sorrisos, lágrimas e brigas para finalmente acabarmos novamente nos estapeando e sorrindo após um bom sexo reconciliatório. Promessas e pedidos, amarguras e doçuras e lá estava eu na sala de parto do nosso primeiro filho. Inesperado, mas já infinitamente amado. Vimos seus primeiros passos, os dentes caírem e outros surgirem, as decepções de um jovem e as alegrias que passou. A vitória no vestibular, a derrota no futebol. Então após um mal estar veio a notícia da minha doença. Depois de tudo o que passei não desistiria fácil da minha vida e lutei com todas as minhas forças. Perdi os cabelos, a esperança, as forças. Mas meu sorriso continuava ali, até mesmo diante das lágrimas deles na hora da minha despedida. Eu o agradeço por todos os sorrisos, por todos os momentos felizes e também pelos tristes. Dei conselhos ao meu filho, agora um homem feito que eu torcia para ser tão feliz quanto fui. Eu tinha feito a escolha certa em ter abandonado tudo para finalmente me sentir viva.

Agora eu tinha meio século, dezoito mil duzentos e tantos dias, não sei quantas horas ou segundos e uma vida completa que chegara ao fim. E eu não poderia imaginar um final mais feliz.
 

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