16 fevereiro 2016

Caindo...



“... Somos programados pra cair.”


Aqui da varanda tudo parece distante. As pessoas se transformam em formigas, seguindo suas rotas, seguindo seus caminhos, seguindo sua rotina. Aquela rotina que satura e acumula pensamentos e dores. Exatamente aquela rotina que me satura a alma. Não sei ao certo qual gota foi a última e que me fez transbordar. Daqui de cima quase não ouço as buzinas e o som incessante do tráfego lá embaixo, mas vejo e acompanho com toda calma do mundo o carro vermelho virar a esquina, parar em frente a faixa de pedestres, virar a direita e desaparecer.

Vejo a velhinha a qual dou um sanduíche todas as manhãs, na mesma esquina e lembro-me do seu sorriso. Não consigo vê-lo, mas sei que está ali quando acena para a moça de vestido vermelho. Lembro-me de cada ruga em seu rosto feliz e me pergunto como ela simplesmente não cansa de tudo aquilo, da sua vida precária e isso coloca em cheque que talvez eu seja nova demais para já estar cheia dessa vida. Dizem que para cada pessoa existe uma cruz de peso equivalente ao que ela suporta carregar e sinto que a minha já está pesada demais.

Ouço barulhos do outro lado da porta e me pego ansiosa, esperando pra te ver novamente passando por ela com aquele sorriso torto que tanto gosto. Então novamente o silêncio, recordo que tenho vizinhos e provavelmente foi apenas um deles. Lembro da última vez que você me viu sentada no parapeito, me estendeu a mão e me fez descer de vagar para seus braços. Lembro do gosto do chocolate quente com café, do chantili mentolado e do seu beijo misturado a tudo isso. Lembro das suas palavras insistindo em me mostrar que a vida me acalentava todos os dias, me agraciava com o sol ou com a chuva, com um vento frio ou o calor. Que todas as sensações e dores faziam parte da vida.

Então te pergunto o que significa a morte no meio de tudo isso e com toda calma do mundo você me mostra as folhas caindo da árvore. “Para elas não existe o amanhã”. Amanhã. Amanhã. Amanhã. Uma palavra tão vaga e com tantos significados. Para mim o amanhã era mais um dia de trabalho, ônibus lotado, uma mesa, papeis, números e mais números. Assim como o amanhã seguinte e o próximo e o depois dele. Talvez para mim não deva existir o próximo amanhã e olho pros meus pés balançando com o vento enquanto penso nisso, enquanto vejo as formigas humanas lá embaixo, enquanto sinto o sol nascer e me agraciar com seu calor. Talvez seja melhor ir tomar aquele chocolate com café.


Atenção: Essa crônica faz parte do meu projeto Aquela Música que é composto por crônicas inspiradas em músicas. -Caindo- foi escrita inspirada na música Amianto da banda Supercombo.

14 outubro 2014

Platônico...


"...De olhar vendido te vendo... "

Lá estava ela novamente. Todos os dias, na mesma hora. Lá estava ela, linda como sempre. Quanto a mim, conseguia apenas passar em frente a sua janela da forma mais lenta possível, para absorver ao máximo sua imagem, a forma que seus longos cachos castanhos lhe caíam sobre os ombros ou como ela os domara com uma fita combinando com a roupa. A blusa que lhe marcava o decote ou as mangas recatadas. E eu não me importava com nada disso. A melhor parte de tudo o que via, eram seus lábios e como sempre estavam adornando um sorriso. Não apenas um sorriso, o sorriso mais lindo de todos, como se apenas ele pudesse devolver a alegria do universo. Talvez isso fosse um exagero do meu coração apaixonado, mas de que importava? Era um devaneio que eu guardaria para sempre comigo.

Um segredo que jamais será repetido em voz alta, por quê? Por que seu coração já tem um dono. Às vezes eu tinha a infelicidade de vê-lo chegar sorrateiro por trás dela e lhe tapar os olhos. Doía-me o coração ao ver os sorrisos da minha morena, sendo causados por outro. Minha morena... Minha morena... Desde quando posso classificá-la dessa forma? Talvez apenas na minha mente, onde também residem os devaneios de que seria eu no lugar dele, que seria eu a lhe tocaria o rosto daquela forma suave, lhe abraçaria e sentiria o cheiro dos seus cabelos, me perderia ao sentir a pele suave de sua nuca, seu rosto e por fim seus lábios. No fim tudo não passa de devaneios e sonhos de um amor platônico.

Longos são os suspiros e os sonhos e curtos os momentos junto a ela. Outra manhã e lá estava eu, abrindo a porta da loja e ao menor som do outro lado da rua, como um bobo virava não só o rosto, mas o corpo inteiro. A visão que deveria ser gratificante tornou-se um tormento ao ver lágrimas perderem-se em seus lábios descoloridos. Por um momento senti sua dor e sem pensar, meus passos levaram uma das flores do jardim ao alcance das minhas mãos e em seguida até a frente da sua janela. O gesto simples conseguiu pelo menos lhe tirar um breve sorriso antes que ela entrasse e me privasse de sua imagem. Não demorou para as fofoqueiras do bairro entrarem na loja e começarem a falar sobre a briga da noite e como o meu rival no amor tinha ido embora com uma ninfeta. Ninfeta. Impossível não rir com a palavra que usaram para chamar a filha do dono do mercado.

Uma parte de mim sentia-se culpada pela outra que estava ligeiramente contente com a informação. Nos dias seguintes arriscava um sorriso, um aceno, outra flor. Ganhei alguns sorrisos em troca. Nas semanas seguintes eu ganhei sorrisos e conversas, descobri por acidente seu aniversário e sem jeito te dei aquele vestido que por tanto tempo você admirou na vitrine. A visão da manhã seguinte me deixou com a boca aberta por vários segundos e só fui perceber quando o toque de sua mão sob meu queixo o colocou no lugar. Aquele rápido toque dos seus lábios sobre os meus, uma forma de agradecimento você disse, mas para mim, eu que estava sendo presenteado. Foi com satisfação que notei o brilho voltar aos olhos dela e o sorriso da minha morena finalmente me pertencendo.




Atenção: Essa crônica faz parte do meu projeto Aquela Música que é composto por crônicas inspiradas em músicas. -Platônico- foi escrita inspirada na música Vendo à Vista do Alexandre Nero.

03 junho 2014

Crônica Urbana II - O Metrô



Algumas pessoas da região metropolitana acabam aderindo ao uso desse meio de transporte. Seja por opção ou por não ter outra opção. A tarefa é sempre árdua e a viagem, uma aventura. Ela começa já na hora de comprar o bilhete: ou a fila vai estar gigantesca ou você vai ter a sorte de chegar pouco antes da multidão que brota do chão. O impressionante é que, não importa a quantidade de plaquinhas e pedidos educados e áudios e qualquer outro artifício que seja usado, ninguém vai comprar o bilhete com dinheiro trocado. E se você for essa pessoa, pode ter a certeza de voltar com o bolso cheio de moedas, fazendo barulho maior que mendigo sacudindo latinha de esmola e de brinde ainda aguentar a cara feia do atendente.

Bilhete na mão? Hora de passar a catraca. Cuidado com ela! Existem três opções: ficar com a coxa roxa, a bunda roxa ou gira-la na velocidade de uma tartaruga. Passar por ela é quase como entrar em um barco e remar contra a maré, principalmente se chegou algum metrô e as pessoas estão saindo da estação. A sensação é de estar tranquilamente, boiando no mar e de repente um cardume de sardinhas te atropela. Tente não esbarrar nas pessoas. Dez pontos ao desviar de um adulto, 50 ao desviar de criança.

Nas estações com terminais integrados a situação pode ser ainda pior. O cardume de ex-sardinhas podem adquirir tendências violentas ao galgar seu lugar na fila do ônibus. Fique fora do seu caminho ou pode ganhar belos hematomas. Mas um longo caminho ainda te separa da tão esperada viagem. Literalmente longo, as catracas nunca ficam próximas da área de embarque e lá vai você andando e desviando das pessoas até finalmente chegar. Sabe a linha amarela? Você vai notar que ninguém obedece e cada quadradinho da cerâmica é disputado a esbarrão e cutucões discretos ~ as vezes nem tão discretos assim.

As pessoas ficam por ali, andando, conversando, desejando bom dia ou entretidas com seus aparatos tecnológicos. Tudo em certa paz até o indicador luminoso mostrar o tempo para o próximo metrô. Enquanto estiver acima de 5 minutos pode ficar tranquilo, nos 3 minutos as pessoas começam a se movimentar, falta 1 minuto? Proteja-se! As pessoas irão se estapear para ficar o mais próximo possível do pequeno espaço entre o embarque e o metrô. Espaço esse que pode ser reduzido em até 10 centímetros. Aqueles milésimos de segundos para as portas abrirem são um martírio. Cada um que tente acotovelar o colega do lado pra chegar mais perto do centro da porta.

Existem setas indicativas: para embarcar, as pessoas devem ficar do lado direito deixando a área da esquerda livre para o desembarque. Acha que funciona? Tanto quanto a linha amarela. Na dúvida todo mundo fica no meio e quando a porta abre, é melhor não da bobeira. Cada lugar é disputado com bolsas, pernas e cotovelos. Conseguiu sentar? Agradeça e encolha-se no seu cantinho para não ser esmagado pelas demais pessoas. Não conseguiu uma vaga? É melhor procurar um lugar para se segurar e firmar os pés no chão. Nem cogite a possibilidade de levantar um pé ou vai perder o lugar. O mesmo para as mãos. Botou, colou e não ouse se mexer. Mas não se preocupe, na próxima estação outras pessoas entrarão e pode acreditar: será tanta gente que você não vai precisar se segurar, as pessoas farão isso pra você de bom grado.

Respirar é algo raro então tente sincronizar sua respiração com a das pessoas a sua volta. Quando expirarem, você aproveita o aperto pra inspirar e solte aproveitando a vaga quando eles inspiram. A cada estação aquela voz irritante vai te informar a estação que está chegando, a seguinte e para onde está indo. Não se sinta burro, apenas existem pessoas que não conseguem lembrar-se do caminho. Tá chegando na sua estação? Recomenda-se que vá se aproximando da porta pelo menos uma estação antes e fique o mais perto possível. Quando a porta abrir, prepare-se para a segunda guerra.

Se não tiver agilidade suficiente, apenas saia da frente dos outros ou será atropelado. Se quiser arriscar e acompanhar a massa, cuidado onde pisa, em quem pisa e para onde vai. Os riscos estão por todo lado, mas se estressar não vai valer a pena. Sair de casa mais cedo ou um bom dia para a pessoa ao seu lado pode resolver o problema. Aliados são sempre importantes para encarar os desafios dos meios de transporte da cidade, seja para segurar sua bolsa ou te manter de pé a cada parada.

25 abril 2014

Crônica Urbana I - T.I. Rio Doce


Recentemente reformado ou, seria melhor dizer, em uma reforma eterna, o terminal de Rio Doce não é muito conhecido fora do ciclo de usuários. Mas com toda a certeza alguém já ouviu falar das lendas Rio Doce/CDU, Rio Doce/Dois Irmãos, Rio Doce/Piedade e seu primo Rio Doce/Barra de Jangada. Os quatro ônibus que percorrem os caminhos mais longos desde o ponto de partida até o fim do mundo. Além das quatro estrelas, outras linhas circulam pelo local: Rio Doce/Princesa Isabel, sua linha direta com o metrô do Recife depois de fazer a curva sabe-se lá onde; Rio Doce/Príncipe te leva até o Derby, é logo ali, mas parece uma eternidade; Rio Doce/Conde da Boa Vista, você se pergunta porque não pegou outro; Rio Doce/Circular, você não sabe onde ele passa nem pra onde vai; Alameda Paulista/T.I. Rio Doce, não dá pra ver a parte de dentro do ônibus; Loteamento Conceição/Rio Doce (PE22), você pode estar na esquina, mas ao avistá-lo, aprende a voar pra chegar ao terminal antes dele ou cada fila ganhará mais 30 pessoas; Maria Farinha/Casa Caiada, o famoso da frase “toda hora cravada sai um… Saiu não? Espera mais uma hora.”

Apesar de estar em constante reforma, melhorias puderam ser observadas, como a colocação das lixeiras, reforma nos banheiros, organização das lojas e trajeto do ônibus dentro do terminal. Esse último ponto foi importantíssimo, afinal o congestionamento dentro do terminal às vezes chegava a ser pior do que lá fora. Quanto às lixeiras, falta apenas serem usadas, assim como o uso correto dos banheiros. Os usuários do terminal são mais do que simples pessoas que entram e saem, a demora em cada fila acaba transformando cada um em um amigo, companheiro de viagem e ocasional tortura. Lá dentro é quase uma selva, seus amigos acabam se tornando seus melhores aliados, aqueles que vão sempre ficar de olho quando você for comprar uma pipoca ou o cafezinho e não te deixarão perder o lugar na fila.

Um dos maiores problemas enfrentados é o sol. Não existe uma hora em que ele não incomode – há apenas horários em que incomoda de um lado e horas em que o outro lado sofre. A torra é garantida e quase perfeita, quanto a isso é sempre alegado que nada pode ser feito e, para azar de algumas pessoas, nem todas as linhas têm motoristas legais que colocam o ônibus em posição antes da hora da partida apenas para agraciá-las com uma sombra momentânea.

Não é bom confiar cegamente nos horários determinados para saída dos ônibus. Eles nunca funcionam. Talvez esteja certo duas vezes ao dia, mas apenas isso. Linhas como Rio Doce/CDU da empresa Caxangá, é o com maior saída nos horários de pico, chega a um intervalo médio de seis minutos. Já o Rio Doce/Piedade ou Barra de Jangada, o intervalo pode chegar a 20 minutos. O Maria Farinha/Casa Caiada então, é melhor sentar. Ônibus dessa linha chega a demorar mais de uma hora para a saída do próximo.

Vale o lembrete de tomar cuidado com a catraca de entrada e saída. São antiquadas, mas cumprem seu papel. Se estiver na fila para entrada, não fique muito próximo ou ganhará um belo hematoma, mas também não fique distante ou perderá facilmente o lugar. Por mais estranho que pareça, você coloca o dinheiro da passagem ou o cartão VEM pela pequena brecha entre os vidros. Não se preocupe, tem alguém lá para recebê-los (por mais que demore às vezes, principalmente para passar o troco).

Para sua comodidade, lá dentro você encontra as lojas, onde você pode tomar o café da manhã (não muito saudável) ou recarregar o seu VEM, além de outras comodidades como recarga de celular e o passatempo da viagem, famoso pipocão – ainda custa R$ 0,60. Jornaleiros identificados circulam no local constantemente, vendendo o melhor companheiro dos usuários de uma das quatro lendas: O AquiPE. Também tem a opção da Revista da TV e do Diario de Pernambuco. Ao abrir o jornal apenas lembre-se de que a pessoa sentada ao seu lado pode não querer ler.

Por fim, o terminal possui uma boa localização para os moradores da região e estruturalmente ele segue atendendo a demanda. Seu maior problema também é o problema de toda a cidade: a reduzida frota de ônibus disponível para tamanha quantidade de usuários. Um problema extra, se é que podemos chamar assim, é facilmente identificado como a individualidade humana e falta de cordialidade. Dentro daquela selva é melhor não se distrair ou você pode parar facilmente no fim da fila.


Essa minha crônica foi postada no Jornal de Olinda *-* (clica que vai).

14 novembro 2013

Sobre um desencontro...



Aquele som acabava tirando minha atenção do livro tão compensador que eu lia. Gritos, reclamações, tapas no vidro, mais gritos e o ônibus retomava seu caminho depois que a usuária escandalosa descia. Mesmo com os fones de ouvido eu ainda consegui ouvir toda a confusão. Depois de ser tirada de dentro da minha pequena bolha, me atrevo a olhar em volta e ver as pessoas que subiram e acomodaram-se enquanto eu estava absorta nas páginas. Sempre tive essa mania, olhar para as pessoas, suas expressões e tentar adivinhar o que acontecia com elas, seus problemas e aflições ou o motivo de seus sorrisos, para onde estavam indo ou de onde vieram.

Olhava para todos ali dentro de forma rápida, sem me prender a alguém. Mesmo de óculos escuros a posição da cabeça poderia me denunciar e encarar uma pessoa nunca foi um gesto bem visto, mas ao vê-lo, não conseguir impedir meu mundo de parar. Lá estava os olhos dele presos a um livro, os fones de ouvido, o pé balançando no ritmo da música. Talvez o tenha olhado com tanto afinco que por um instante ele ergue a cabeça e posso ver seus olhos e antes que você pense que eram belos olhos azuis ou verdes, está redondamente enganado. Eram belos e profundos olhos pretos. Nem castanhos, nem qualquer outra cor. Pretos. Como seu cabelo, como a camisa social que usava, como a calça, como os sapatos e as pequenas pulseiras de borracha em seu pulso esquerdo.

Absorvi cada detalhe até notar que ele ainda me olhava e depois para minhas mãos onde ainda segurava o livro. Por mais que tentasse segurar, acabei sorrindo. O mesmo livro. Quais as chances disso acontecer? Virava a cabeça em outra direção, mas meus olhos ainda estavam lá, fixos nele e pude notar ele me olhando por mais alguns segundos antes de voltar a leitura. Eu também voltava ao livro, sem absorver mais as palavras. Seu olhar não me saía da cabeça, o tom de seus lábios, da sua pele. Queria tocá-lo, sentir o calor que emanava e quem sabe sentar em uma praça e discutir o livro? Qual será seu personagem favorito?

O som da campainha do ônibus me tirava do devaneio, olhei para o lado e seu lugar vago apertou meu coração. Rapidamente viro-me para olhar pela janela e lá estava ele com o livro embaixo do braço, um breve aceno afirmativo com a cabeça era feito, eu apenas sorria e ajustava o óculos enquanto o ônibus seguia seu caminho. Quem sabe um dia não nos encontramos novamente.


Atenção: Encontros é uma nova modalidade de crônicas que descrevem aqueles breves encontros do nosso dia-a-dia e que podem mudar toda a sua vida ou apenas tornar-se uma boa lembrança.

04 outubro 2013

Seu...


"Eu tava só, sozinho..."

Eu sempre fui do tipo sozinho. Nunca tive muitos amigos e nem se quer conhecidos. Os vizinhos me chamam de “aquele cara de cabelo comprido da casa verde” e não precisavam saber de mais nada sobre mim. Muito menos que fui abandonado e por isso estava agora nessa cidade de merda, com um emprego medíocre e sozinho. Sem parentes ou amigos para me aturar enquanto choro minhas pitangas.

O que eu tinha mais próximo do que chamam de amigo era o Carlos, paulista perdido nos confins do nordeste, sozinho, mau humorado e anti social como eu. Às vezes saíamos para beber. Eram dias bons, sentávamos no bar, pedíamos uma cerveja cada e ficávamos soltando fumaça e dando goles na boca da garrafa enquanto olhávamos a rua, as pessoas que passavam, expressões e roupas estranhas. Assim íamos noite a dentro, as vezes até amanhecer. Conversar? Para que?

Show da minha banda favorita? Não fui. Desfile de gostosas de lingerie na TV? Mudei de canal. Apresentação de um circo famoso lá? Lembrei de você e desliguei a TV. Nada me interessava nem chamava atenção e quando percebi, já era noite, a sala estava escura e o meu estômago roncando. Fui até a cozinha arrastando os chinelos e lembro de você reclamando disso. Ligo a cafeteira e lembro de você reclamando do café requentado. Pego um copo e lembro de você reclamando por não usar xícaras. E mesmo com tanta reclamação, eu sentia sua falta.

A noite chegou e foi embora sem que eu desse a mínima para ela, o mesmo aconteceu com o dia seguinte e o próximo e o próximo. Passava na frente da porta com um sanduíche a meio caminho da boca quando notei toda a correspondência acumulada no tapete. Querendo ou não precisava conferir isso, afinal, se não pagasse a luz ou o gás teria sérios problemas para pedir e requentar a pizza. Comecei a separar as correspondências nas pilhas de sempre. Lixo, lixo, vale a pena olhar, lixo, conta, vale a pena, lixo, lixo, conta, conta, conta. Um sobressalto e senti como se o mundo tivesse parado por um breve segundo.

Nem precisei pensar muito para saber quem em sã consciência ainda enviava telegramas. Não me interessava onde você estava dessa vez, Aracajú, Alabama, Japão. Seja lá o lugar em que estivesse, não era ao meu lado. Fui dormir com as suas palavras, que apesar de escritas, eu conseguia ouvir claramente naquela sua voz doce e suave cheia de sotaques dos lugares por onde passava “volto logo”. Fui dormir na cama, como não fazia a semanas e tenho certeza de que peguei no sono sorrindo e foi assim que acordei.

Saltei da cama assim que vi a claridade por entre as cortinas, tomei um banho e assoviava enquanto fechava o portão. Dava um pequeno salto para descer a calçada e caminhava com as mãos no bolso. Dava bom dia a todos que encontrava e me divertia com seu espanto. Passava na frente da delegacia e arrancava algumas pequenas flores do canteiro, acabei esbarrando no delegado e lhe estendi as flores, quase levei uma sova e fiz uma nota mental pra te contar isso depois. Nem esperei pela continuação das reclamações dele e desci a rua até a padaria.

Aquele cheirinho de pão fresco me fez salivar. Com todos os dentes a mostra desejei um bom dia, recebi os pães da mão enfarinhada do seu Manoel. “O amor é lindo seu Manoel” murmurei enquanto lhe pegava as mãos e depositava um beijo “E a vida é bela” continuei falando enquanto ia até o caixa, deixando o troco na caixinha de natal para a alegria da atendente. Comi, arrumei a casa, tomei outro banho. Durante os dias seguintes eu fiz compras, reabasteci a casa, lavei os lençóis e finalmente ouvi o anúncio. Te veria esta noite.

Coloquei a camisa de flanela que ficava linda em você depois de uma noite ao seu lado, já com óbvias más intenções. Uma calça preta, tênis e quando notei estava sentado ao lado de várias pessoas esperando. E esperei pacientemente até ver o holofote aceso no picadeiro e o mestre de cerimônias fazer a introdução, vi leões, cachorros, palhaços e finalmente você. Acompanhei deslumbrado você descer lentamente pelo longo tecido, enroscar-se e descer quase em queda livre, sorrir e acenar.

Senti seu olhar sobre o meu, fiz um aceno com a cabeça e te esperei na saída. Não consigo imaginar como cabe tanta alegria em um só peito, quando abri os olhos e te vi sobre meu corpo usando a minha camisa. E foi assim todas as noites até que você foi embora novamente. Não te pedi para ficar como implorei da outra vez. Sabia que você era assim, gostava de ser livre, mas no fim sempre volta para mim.



Atenção: Essa crônica faz parte do meu projeto Aquela Música que é composto por crônicas inspiradas em músicas. -Seu- foi escrita inspirada na música Telegrama interpretada por Zeca Baleiro.

02 outubro 2013

Alguém...



"...Um outro alguém que me tomou o seu amor."

Eu podia ouvir o som dos seus passos ao longe, rápidos e curtos. Sempre ficavam mais lentos quando se aproximava da porta de vidro. Acompanhava então seus movimentos, arrumar a franja que teimava em lhe cobrir os olhos, arrumar a alça da bolsa sobre o ombro direito, enfiar os dedos nos passadores da calça para puxá-la levemente para cima, passar as mãos sobre a barriga de forma a alinhar a blusa e finalmente entrava. Acenos e sorrisos para todos. Cumprimentos lentos até chegar a sua mesa, onde não precisava virar a cabeça para te olhar. Bastava apenas me inclinar um pouco para o lado e visualizar-te por trás do monitor do meu computador.

Todos os dias eu assistia seu ritual desejando dolorosamente ter estado ao teu lado enquanto você decidia que blusa combinava melhor com a calça azul que você usava hoje ou quem sabe que perfume deveria usar. Esse eu faria questão de sentir dando um leve suspiro em sua nuca. Hoje você parecia inquieta, mordia a borracha do lápis, balançava os pés, olhava de um lado para o outro, como se esperasse algo ou seria alguém? Torcia para não ser a segunda opção. No almoço, dava um jeito de sentar na mesma mesa que você. Nunca tinha coragem de puxar assunto, não foi diferente dessa vez. Engoli o almoço e murmurei uma desculpa de que tinha muita coisa para fazer.

Dessa vez, finalmente tomei coragem e lá estava sobre sua mesa uma simples rosa vermelha, o cartão anônimo levou horas e horas para que eu conseguisse escrever uma simples frase “Sempre à seus olhos”. Será que assim você entenderia que eu estava aqui, bem na sua frente, ansiando por um simples olhar? Um sorriso que fosse dedicado apenas para mim? Meu coração batia mais rápido do que seus passos. Meus olhos seguiam seus movimentos que pareciam executados em câmera lenta. Quanto tempo mais você levaria para chegar a sua mesa? Podia ver seu olhar intrigado sobre a rosa, o brilho que ele exibia, seu toque suave nas pétalas e enquanto você lia o cartão eu suava frio. Sua cabeça movimentava-se na minha direção.

Agora você sorriria para mim, eu sorriria de volta e ergueria os ombros, como se não fosse nada de mais. Andaria até você, te chamaria para um café onde conversaríamos finalmente sobre outra coisa que não planilhas e prazos, te deixaria em casa e no outro dia almoçaríamos juntos, quem sabe um cinema no fim de semana, um jantar, o que nos levaria ao próximo passo e ao seguinte e finalmente te teria em meus braços e a primeira coisa que eu veria ao acordar pelo resto da minha vida seria você.

Então tudo mudou. Enquanto você sentava-se e pegava o telefone, sorria enquanto conversava com alguém, podia ver sua face corar enquanto cheirava a rosa. Sou chamado para uma reunião e não posso continuar com o meu plano. Quem sabe durante o almoço ainda funcione, só precisava de uma nova estratégia. No almoço você não estava e chegou atrasada. Seu sorriso era contagiante e nunca vi seus olhos brilhando dessa forma. O dia foi embora e outro começou, não perderia tempo dessa vez. Quando ouvi seus passos tratei de ficar logo de pé, te abordaria ainda fora do prédio.

Desabei sobre a cadeira junto com os estilhaços do meu coração quando te vi dando um beijo de despedida em outros lábios. Nas suas mãos, novas rosas. Podia pegar trechos de suas conversas com a ruiva que eu nem me lembrava do nome, aparentemente ele era seu novo namorado pelo qual você estava apaixonada a muito tempo e ele finalmente se declarara ao te mandar uma rosa. Foi então que eu entendi que a minha declaração foi usada em consideração de outro amor. Meu mundo caíra e nada mais importava. Não sei bem quanto tempo passou, se foram dias ou semanas fazendo os mesmos movimentos, os olhos fixos no computador, os fones de ouvido. Tudo para evitar te olhar e até mesmo te ouvir.

Chegava para um novo dia no trabalho com a dor dentro do peito e logo me espantei com a rosa sobre minha mesa e um cartão escrito “Para seus sorrisos”. Rapidamente olhei para você que estava mais do que distraída em mais um telefonema, olhei então em volta e pude ver aqueles olhos azuis e curiosos por baixo de um cabelo ruivo e vivo, a expressão que eu mesmo tinha a algumas semanas refletida ali: o nervosismo. Eu erguia a rosa e sorria, de forma sincera. Escrevi em um pequeno papel “Café as 16h?” e vi o sorriso crescer em seu rosto sardento e sem jeito balançar a cabeça de forma afirmativa. No fim, a rosa me deu alguém para amar.



Atenção: Essa crônica faz parte do meu projeto Aquela Música que é composto por crônicas inspiradas em músicas. -Alguém- foi escrita inspirada na música A Flor da banda Los Hermanos.

27 setembro 2013

Liberdade...



"...E eu que pensei que fosse o fim..."

Abri os olhos e por instinto levei meu braço para o lado esquerdo da cama, senti os lençóis vazios, o travesseiro frio e pude apenas suspirar. Estava difícil me acostumar a dormir sozinho de novo, mas era necessário. Ela não voltaria. Já estava cansado de lutar contra esse vazio e a falta que sentia dela. O mais difícil era aturar minha mãe falando que tinha perdido a mulher da minha vida por causa desse meu jeito super-romântico de ser. Sabe, algumas mulheres achariam isso algo bom! Só não encontrei uma dessas ainda. Colocava os pés no chão e precisava chutar as folhas de papel para os lados na busca pelo chinelo. 

Folhas e mais folhas de músicas com o nome dela... Músicas jamais terminadas, músicas de dor de cotovelo e pequenas estrofes de superação em um momento raro em que eu me iludia de que conseguiria viver sem ela. Embaixo de uma dessas folhas estava um pedaço de uma de nossas fotos que eu rasguei durante um dos muitos acessos de raiva, exatamente o rosto dela, sorridente, como se fossemos durar para sempre. O nó me subiu a garganta junto com o gosto amargo da saudade, funguei, sequei os olhos com o dorso da mão e comecei a recolher todos os papeis caídos, pedaços de foto, restos de embalagem de comida. Chega. Estava cansado e queria mais do que nunca uma mudança em minha vida. 

Dessa vez não iria chegar até a porta e começar a catar os pedaços das fotos no lixo novamente. Coloquei a primeira calça que achei junto com a primeira camisa que minha mão alcançou. Desci as escadas do prédio correndo e me impulsionando para frente a cada passo, tinha medo de recuar e desistir, mas cheguei bem na hora. O caminhão do lixo virara a esquina e lá estavam os sacos pretos cheios com meu passado no chão. Esperei até que os homens vestidos de vermelho os jogassem na caçamba e os levassem embora, para longe do meu alcance. Me senti leve. Um calorzinho começava a brotar no meu peito. Eu não me contentaria com essa pequena chama, queria sentir uma fogueira inteira. 

Subi as escadas de dois em dois degraus, irrompi pelas portas até meu quarto e lá estava ele, escorado na parede, inocente e silencioso. Quantas noites não passei chorando sobre seu braço, dedilhando melodias lentas e murmurando letras tristes? Não queria mais sentir essa dor. Dei uma boa limpada, troquei as cordas, coloquei dentro da capa e quando me dei conta já estava contando as cédulas recebidas por sua venda. Andava de vagar pelo centro da cidade, cheio de pessoas indo e vindo, ainda pensava em qual seria meu próximo passo. Me deparei com uma loja de bicicletas e lembrei de um dos muitos momentos que me torturavam, a voz dela contendo um riso ao indagar como eu não sabia andar de bicicleta aos 25 anos. 

"Essas coisas não se explicam oras, simplesmente nunca aprendi". Entrei na loja decidido e saí dela com minha Caloi azul com detalhes verde limão totalmente montada. Sem dinheiro, mas feliz. Era a oportunidade perfeita para aprender. Olhei para o relógio no topo do prédio dos Correios, ainda eram 7h. Corri para atravessar o sinal fechado, atravessei a ponte, mais uma e lá estava eu no Marco Zero. Montei na bicicleta e podemos simplesmente pular a parte dos inúmeros tombos que tomei antes de conseguir me equilibrar e dar algumas voltas incertas. 

O vento no rosto, o sol da manhã, a sensação de liberdade. Queria arriscar mais e ir mais longe. Então lá estava eu, enfrentando o trânsito de volta pra casa. Podia ouvir as buzinas, sentir os buracos, acelerava e quanto mais rápido estava, mais o sorriso aumentava em meu rosto. As bancas de revista da Guararapes traziam as notícias: perca 4kg em 2 dias, Carminha fica Pobre, Comeram a Tiazinha. Em que isso influenciava a vida de alguém? Maneava a cabeça em negativo, estava cansado dessa vida de conformismo e futilidades. Seguia meu rumo, pedalando mais forte e mais rápido. 

Era isso o que eu queria. Um estalo me veio a mente, puxei o celular e tirei uma foto da ponte, com o Rio Capibaribe reluzente sob o sol. A cada bela paisagem uma nova foto. Todas publicadas em um blog. Histórias engraçadas, a melhor galinha guisada da cidade e a pior, as lojas mais baratas, as pessoas espontâneas, o cinema no meio da rua de um bairro pobre com filmes feitos pelos moradores, os artesãos, os pontos turísticos, onde existe ciclofaixas na cidade, no estado, no país, no mundo. E assim seguiu minha vida e meu novo trabalho, mostrar o mundo às pessoas.

Agora estava sentado na beira de uma cama luxuosa em um hotel na Cidade Luz, era Natal e estava nevando. Andava de um lado pro outro um tanto impaciente, testando combinações de gravatas, ternos, jaquetas e por fim lá estava eu usando jeans e uma camisa dos Ramones por baixo de uma jaqueta de couro. Eu podia estar em qualquer lugar, mas jamais deixaria de ser eu mesmo e isso pra mim era o mais importante. Os minutos passavam e continuava aguardando a minha vez de dar entrevista em como decidi simplesmente sair pedalando, conhecendo e mostrando o mundo pela câmera de um celular. 

Meu blog de viagem era um sucesso e meu livro líder em vendas. Ouvia o som do meu celular informando que uma sms chegara, pra variar minha mãe, que finalmente aprendera a enviar sms e não podia deixar seu instinto materno ao me mandar tomar café da manhã e me agasalhar antes de sair. “Mainha, tô bem”, enviei para ela, na esperança de tranquiliza-la, mas dessa vez era verdade, agora eu estava bem. Realmente bem, livre da minha dor e feliz. Agora eu entendo a metáfora de que um ponta pé de vez em quando é bom, pois te empurra pra frente. Decidi que essa seria a frase de abertura da minha entrevista. Hoje só tenho a agradecer àquele rosto sorridente que me deixou.


Atenção: Essa crônica faz parte do meu projeto Aquela Música que é composto por crônicas inspiradas em músicas. -Liberdade- foi escrita inspirada na música Veja Só do Tibério Azul.

25 setembro 2013

Sobre a rotina...


O despertador do celular toca pontualmente na hora programada, o som baixo mais alerta sobre a hora do que a desperta, despertar é para aqueles que dormem e não para os que acompanham o nascer do sol. Ainda olha para o teto vislumbrando as finas tiras de sol desenhadas sobre o gesso branco como se não fizessem sentido a sua existência, na sua opinião a noite poderia ter se estendido um pouco mais. O segundo despertador a lembra que precisa levantar, não tem muita escolha ou outra opção. 

Com um longo suspiro ergue o corpo e põe-se a executar a mesma rotina: o rápido banho, as frutas previamente cortadas na noite anterior, a roupa previamente escolhida, os acessórios previamente escolhidos e tudo tratava-se de prévias e execução. Tudo tinha seu tempo pré-determinado para acontecer e as 6am estava pronta para sair, o indicador já pairava sobre o botão do controle remoto da TV quando o celular vibra, sem muito esforço o tira da bolsa já imaginando o conteúdo da sms, mais uma propaganda da operadora. As sobrancelhas erguem-se a medida que o remetente e parte do conteúdo que é exibido. 

Um sorriso paira sutil nos lábios e os dedos percorrem rápido pela tela identificando o padrão da senha que hoje era apenas um atraso. Estava ansiosa, feliz e curiosa. Ele finalmente falara, finalmente uma notícia. Os milésimos de segundos para a sms abrir parecem uma eternidade, mas finalmente os olhos percorrem o texto e o sorriso se desfaz, os olhos brilhantes ganham uma umidade que controla com todas as forças para que não se tornem lágrimas, não entendia como ainda não havia superado o fim e porque ainda o esperava. Guardava o celular, desligava a TV e voltava a execução dos movimentos de sua rotina: abrir o portão, passar, fechar, guardar a chave no mesmo bolso de todos os dias, andar pelas mesmas ruas, pegar o mesmo ônibus lotado e quando se deu conta, já estava saindo do metrô. 

Ainda faltava a caminhada de 1km e respirava fundo de certa forma aliviada por ter mais esse tempo para pensar. Em seu ouvido a Sonata ao Luar de Bethoven ecoava e marcava seus passos, os pensamentos vagavam de cada pedra que ultrapassava, pela ira que lhe subia a garganta, pela lembrança dos bons momentos. As brigas e desentendimentos não lhe irritavam, mas a ilusão de que fora feliz um dia fazia sua bile levar um sabor amargo a seus lábios. Restavam apenas 3 quarteirões e a margem do canal, atravessava as ruas sem se preocupar com o carro que pretendia passar pelo cruzamento, ignorava os sinais de trânsito fechados, os abertos, os carros entrando ou saindo das ruas e garagens.

O pensamento preso em lembranças e sorrisos, em cheiros e sabores, respirava fundo e erguia a cabeça tendo um vislumbre do céu através dos óculos escuros antes de ouvir a buzina distante e de sentir o corpo chocar-se contra o asfalto quente, precisava apenas abrir os olhos para ver as nuvens cruzarem lentamente o céu, agora estava tudo acabado, bastava fechar os olhos e esperar o fim chegar e aquela dor no peito cessaria e encontraria uma provável paz. Mas acabar dessa forma seria fácil demais. Respirava fundo e ouvia a insistente buzina, o carro parado a poucos centímetros das suas pernas, ela apenas dava de ombros e seguia em frente com sua dor.

23 setembro 2013

Insensível...


“... O meu amor é mais caro, diz quanto você pode pagar...”

O toque insistente do telefone me tira a paciência. Sinto vontade de jogá-lo contra a parede e transformar esse pequeno aparelho em milhões de pedaços silenciosos. A forma de identificação facilitava minha vida, para cada grupo um toque único ou para as pessoas mais especiais ou nesse caso, as mais chatas. De forma que eu sabia quem me liga apenas nos primeiros acordes polifônicos. E daí então vinha a decisão de atender ou ignorar. Já estava cansado de ouvir aquela música e ver aquele nome piscando na tela, Angélica, Angélica, Angélica. O que ela queria desta vez? Eu já lhe dera o que fora pedido, pelo que pagou e apenas isso. Talvez esse seja o problema, ela queria o “mais” que eu não lhe podia ofertar assim de tão bom grado.

O telefone silencia, mas a paz dura pouco e começa a tortura novamente. Mais uma chamada dela e eu fico a fitar o nada, enquanto deixo o vinho tocar meus lábios e levarem meus pensamentos para o passado, explanando sobre o fato de que minha vida tinha suas vantagens, boas vantagens que eu levaria tão longe quanto fosse possível. Para mim, a minha vida começara de verdade com aquela primeira vez em que realizei um favor para um amigo e consegui comprovar que sua namorada cairia fácil na cama de qualquer um. Aposta ganha e descobri ali uma mina de ouro que eu explorava com gosto: eu conseguia seduzir mulheres com uma enorme facilidade. Porque não vender prazer? Deixei para trás muitos corações partidos e outros saudosos, que sempre pagam bem por uma nova visita.

Se me sinto culpado? Não. De forma alguma. Angélica era um desses corações partidos. Desde que a conheci e a tive entre meus braços deixei claro minhas intenções, quem eu era e o que fazia da vida. Deixei claro todos os termos dos nossos encontros esporádicos e ela concordou. Nesse caso seria melhor dizer que me iludiu muito bem. Mais um toque e eu finalmente atendo. Ela queria um encontro, pagaria bem. Era um tanto fora da rotina, ela queria apenas um café e uma conversa. Incomum para mim, mas pagando bem, que mal tem? Abro uma exceção nas minhas regras sobre encontros desse tipo. Afinal eram perigosos e as mulheres acabavam se apaixonando. Pelo visto isso já aconteceu mesmo.

Lá estava eu numa bela manhã de sábado, ouvindo seu relato do que fizera no dia, na semana, no mês, com toda a paciência que fora comprada. Ela tentava segurar minha mão que sem desculpa alguma eu retirava de perto da dela. Nada de carícias de namorados. Ela sabia dessa regra e por mais que tentasse me fazer enxergar as vantagens de um relacionamento estável, não adiantaria. A conversa continuava, dava alguns goles no café e pela expressão que ela fez, chegou a minha vez de falar. Falar o que? Com quantas me deitei essa semana? O que teve de esquisito? Porque faço o que faço? Quais as vantagens? O que tudo isso me trouxe? Essa última questão era fácil de responder. Bastava apenas uma olhada no meu apartamento muito bem equipado e confortável, no meu smartphone caro e cheio de funções e no carro caro que eu dirigia. Frutos do meu trabalho e do meu esforço, não devo satisfações a ninguém e todas as minhas contas e luxos são devidamente pagos.

Ela não ficou satisfeita com a resposta e eu pouco me importava, o tempo dela acabara e chegou a hora de ir embora, atender mais uma cliente na esperança de que a segunda parte do meu dia tenha um pouco mais de emoção e troca de fluidos corporais. Levantei sem me preocupar em deixar a conta paga, cavalheirismo não era para quem cobrava pelo prazer dado. Deixava para trás aquela pequena loira sentada a me fitar com os olhos azuis perdidos e lacrimejantes, desejando um pouco mais de afeto e carinho. Para ter isso, seria preciso que ela pagasse mais, muito mais.




Atenção: Essa crônica faz parte do meu projeto Aquela Música que é composto por crônicas inspiradas em músicas. -Insensível- foi escrita inspirada na música Aos Garotos de Aluguel d'A Banda Mais Bonita da Cidade. 
 

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